Um diagnóstico tardio é um renascimento. Uma vida toda de insegurança, de incertezas, se sentindo mal por ser quem se é, buscando formas de entender melhor um monte de coisas. Uma vida inteira. Quando eu era pequena, devia ter uns sete anos, eu reclamava muito de dores de cabeça, não conseguia conversar com as pessoas, era uma criança diferente apesar de saber falar, não entendia o que falavam pra mim, não conseguia falar com as pessoas, na escola eu era péssima. Mamãe me levou ao neurologista, ele pediu exames, lembro de ter feito, não deu nada, ela me levou em um psicólogo e ele disse pra ela que quem precisava de neuro e psiquiatra era ela. Lembro dele dizendo isso, lembro dela triste, achando que estava procurando problemas na filha. Ela tinha razão. Eu precisava de ajuda, mas lá nos 80, a criança era muito negligenciada.
Mamãe se foi sem saber que estava certa. Eu não quis contar pra ela. Eu não sabia qual seria sua reação, eu ainda não me sentia bem com o diagnóstico. Tive medo dela se culpar, tive medo dela falar algo duvidando do diagnóstico, eu não quis lidar com isso e ela se foi. Eu devia ter contato. Não contei. Hoje faz um ano que sei oficialmente que estou no espectro autista. Uma "re-vida". Todos os dias reconheço e aprendo a perdoar e a conviver com essa pessoa atípica que eu sou. Quase todos os dias converso com a Gi menininha e ela não está mais sozinha. Ela tem eu, e toda a força que eu encontro hoje em mim, vem daquela menininha triste, sozinha, que não queria fazer nada, que nasceu e quando se deu conta que estava aqui, sempre quis morrer. Aquela menininha que conseguiu encontrar um pouquinho de sentido na vida com os bichos e com os livros. Hoje a mulher e a menina estão juntas, uma ajudando a outra. Fácil não é. O diagnóstico tardio deixa muitas feridas. Muitas. Todas elas ainda doem, e tudo de antes continua a existir, o que melhora é a cobrança. É se reconhecer. É ser.
Eu não falo abertamente sobre esse assunto porque acho que sou uma soma de tudo que vivi até aqui, dentro do espectro, sem saber, tendo pensamentos capacististas, lutando para me igualar aos outros, para ser uma pessoa "normal". Foi um ano de aprendizado. Perdi minha mãe, minha mãe era grande pra mim e mesmo eu, não sabia. Eu queria ter sido uma filha melhor. Eu sempre com dificuldades em demonstrações de carinho, e pra mamãe isso era tão importante, eu sei que ela sofria com o meu jeito, e eu não consegui, sempre fui uma pedra de gelo.
Quando eu estava na Irlanda, mandei uma carta pra ela, em que consegui escrever algumas coisas. Aquela carta, às vezes ela me mostrava, como se fosse um troféu, algo que ela demorou muito pra conseguir de mim e que ela guardava com muito amor.. Eu queria guardar essa carta, procurei nas coisas dela e não encontrei.
Enfim. Escolhi escrever sobre isso hoje.
De algum jeito, é um ano dessa libertação. Diagnóstico é libertação.
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